Ecos do Evereste (Conto de Halloween)
Pascal tinha um sonho, e estava prestes a concretizá-lo: subir ao monte Evereste. Tinha perfeita
noção de que o desafio era, por si só, exigente, mas fazê-lo sozinho dava-lhe um
entusiasmo fora do normal. A força do seu sonho era enorme — tão poderoso e longo quanto
o cume que pretendia alcançar.
Frente a frente com a imponente montanha, recordou o rosto desfigurado da mãe ao despedir-se do seu único filho — não querendo impedir o seu objetivo, mas sofrendo, mesmo assim, com a decisão. Os seus olhos chorosos, o nariz fustigado pelo uso contínuo dos lenços e a boca torta de tristeza não foram fator de desistência para este destemido homem de 29 anos.
- O-olá?
Uma voz interrompeu-lhe os pensamentos, vinda de trás de si, um indivíduo cercava-se, mas tão absorto estava no seu raciocínio que tinha ignorado o som da sua crescente proximidade.
- Oh rapaz, veio sozinho? - Pascal hesitou. A pergunta soou-lhe absurda, mas ao virar-se e encarar o estranho, percebeu que o homem estava tão confuso quanto ele. Vestia um fato de montanhista antiquado, a sua barba tinha algum gelo agarrado e os olhos, enormes, transmitiam uma inquietação que Pascal não conseguia explicar.
- Sim… vim. — respondeu. — Está também a subir? - sabia que a sua pergunta também era descabida.
O homem sorriu, mas sem que a expressão chegasse aos olhos.
- Por agora, sim. Devia ter mais cuidado. Esta montanha não gosta de quem a desafia sozinho.
Antes que pudesse perguntar o que queria dizer com aquilo, o homem continuou a andar passando por ele e desaparecendo por entre o nevoeiro que começava a cair.
Pascal ficou parado por alguns minutos. Sentiu um arrepio — não apenas do frio cortante — mas como se algo estivesse a sugar-lhe a inicial confiança. Sacudiu a cabeça, era só cansaço. Ou falta de oxigénio. Mas, à medida que subia, as coisas tornavam-se cada vez mais estranhas.
Noutro dia, encontrou uma mulher. Estava deitada, com uma expressão serena e umas botas laranja que a destacavam na neve. Cantava baixinho uma canção que Pascal conhecia, mas não ouvia desde criança — a melodia da Bela Adormecida.
- Está perdido? — perguntou ela, sem o encarar.
- A-acho que não. — disse, sentindo uma estranha pressão no peito. - A senhora está bem?
A mulher não respondeu. Apenas apontou para cima, para uma trilha que ele não tinha notado antes. Quando Pascal se virou para agradecer, ela já lá não estava.
Ao fim do sétimo dia, Pascal já não distinguia bem o que era sonho e o que era real. Via sombras nos vales gelados, ouvia passos que não eram os seus e, em cada encontro, as pessoas pareciam ter algo em comum: estavam sempre demasiado calmas, muito pálidas, e com um olhar distante, como se já não pertencessem inteiramente a este mundo.
Na véspera de alcançar o cume, chegou a uma área onde dezenas de bandeiras coloridas se agitav am ao vento. Lá, encontrou o mesmo homem que vira no primeiro dia.
- Estás quase a chegar, Pascal. — disse ele. — Só mais um esforço. Mas depois, ainda falta descer...
- Como sabe o meu nome? — perguntou, com a voz trémula.
O homem sorriu de novo. Um sorriso gelado.
- Todos nós o sabemos. Estamos à tua espera há muito tempo.
O vento soprou forte, e com ele, Pascal sentiu um peso esmagador cair sobre si. Caiu de joelhos, ofegante. Tudo começou a rodar.
Quando voltou a acordar tinha a completa noção de que todos aqueles que havia encontrado eram ecos - almas presas à montanha. Pessoas que, como ele, tentaram conquistá-la, e falharam. O Evereste não os libertava. E agora, ele também fazia parte dele.
O último pensamento que teve antes de tudo voltar a escurecer foi a imagem da sua mãe a chorar, o seu rosto carregado de dor e a certeza de que nunca voltaria. Vários dias depois, uma expedição encontrou o corpo de Pascal, congelado, com um sorriso sereno nos lábios — como se tivesse feito as pazes com o seu destino.
Sara Ribeiro
Outubro de 2025


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